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sábado, 21 de maio de 2011

A CARTOMANTE

“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”... Citando Shakespeare, Camila tentava justificar para Marcelo o fato de ter ido a uma cartomante, enquanto este ria dela.
- Pode rir... Os homens não acreditam em nada mesmo! Fique sabendo que eu fui e ela adivinhou o motivo antes de eu ter falado qualquer coisa. Ela disse: você gosta de uma pessoa e tem medo que ela te esqueça. Remexendo as cartas, continuou: mas isso não vai acontecer.
- Pois ela errou, brincou Marcelo.
-Não fale assim! Se você soubesse o que eu tenho passado ultimamente por sua causa...
Marcelo colocou as mãos de Camila entre as suas e olhando fixamente para ela, disse:
- Não tenha medo! Eu te quero muito. Seus medos não tem fundamento. Quanto a isso, a melhor cartomante sou eu mesmo. Além do que, acho arriscado você andar por esses lugares. Roberto pode ficar sabendo...
- Tive muito cuidado.
- Onde fica a casa?
-Aqui perto, na Rua Amazonas, ninguém me viu.
- Camila, você realmente acredita em cartomante?
- Ela (sem saber que já conhecia o enredo) disse que realmente há muito mistério e muita verdade na vida. Cada um crê naquilo que lhe convém. Ela estava satisfeita com a consulta, pois a cartomante acertara tudo.
Marcelo desistiu de fazê-la mudar de opinião. Ele próprio já teve suas superstições quando mais jovem. Depois as substituiu pela fé.
Por fim, separaram-se contentes: ela por sentir-se amada e ele lisonjeado, afinal ela arriscou-se por ele. O encontro havia sido na casa de uma conterrânea de Camila, na Santo Marqueto e ela rumou para a Júlio Borella, onde mora. Marcelo, a caminho de sua casa, passou pela Rua Amazonas e deu uma olhada para a casa da cartomante.

Roberto, Marcelo e Camila. Um trio amoroso. Os dois homens eram amigos de infância. Roberto estudou em Porto Alegre, atuou no Judiciário, casou-se com Camila, uma socialite, mas depois de alguns anos voltou para sua cidade e atuava como advogado. Marcelo entrou para o funcionalismo público por insistência de sua mãe.
Quando o casal chegou, Marcelo os buscou no aeroporto. Ficaram felizes por estarem próximos novamente. Marcelo percebeu que Camila era muito interessante. Roberto não havia exagerado. Um pouco mais velha do que eles, mas com belos traços e muito feminina. Com o tempo, a convivência trouxe intimidade. Quando faleceu a mãe de Marcelo, Roberto se encarregou de todos os detalhes e Camila, de confortar Marcelo. E como confortou! Em seguida veio o amor. Adoravam ficar juntos e o faziam sempre que possível. Ele até tentou evitar, mas ela o envolveu de todas as maneiras e ele se deixou levar pela paixão, pelo desejo. Disse adeus a seus princípios morais.
Roberto, sem a menor suspeita, continuava o mesmo amigo de sempre. Um belo dia... Uma carta anônima... Para Marcelo. Nela, entre desaforos, estava escrito que todo mundo estava sabendo do caso. Marcelo, com medo, passou a rarear as visitas e Roberto quis saber a razão. Ele inventou uma desculpa e com o tempo parou definitivamente de visita-lo.
Foi nesta época que Camila recorreu à cartomante, pois estava preocupada. Passaram-se algumas semanas. As cartas anônimas continuavam. Camila achou que só podia ser coisa de invejoso e ignorou, mas Marcelo temia que elas fossem enviadas também a Roberto. Ela se comprometeu em cuidar da correspondência e interceptar, se fosse o caso...
O tempo foi passando e aparentemente nenhuma carta veio, mas Roberto estava diferente. Camilo comentou com Marcelo que ele andava estranho... Falando pouco... Decidiram dar um tempo, cancelar os encontros por algumas semanas.
No dia seguinte Marcelo recebeu no trabalho, um bilhete de Roberto: Venha até minha casa, preciso falar com você. Teria ele descoberto? Mil coisas passavam pela cabeça dele, todas horríveis! Só conseguia imaginar cenas trágicas com Camila e com ele próprio. Seria melhor levar uma arma? Não... Estou exagerando... Será?
Enquanto dirigia até a casa dele encontrou um acidente, o guincho estava retirando os veículos e o trânsito foi desviado. Por conta desse desvio, avistou a casa da cartomante e lembrou-se da consulta de Camila... Seria coincidência? Destino? O medo estaria lhe trazendo de volta as superstições? Olhava para a casa... Será? As pernas queriam ir... “Há mais coisas entre o céu e a terra...” quando se deu por conta já estava dentro da casa. A própria cartomante o atendeu e o conduziu para uma sala pouco iluminada. Embaralhou as cartas e colocando três sobre a mesa, disse-lhe:
- Primeiro vamos ver o que o trouxe aqui: você está com muito medo...
- Marcelo, surpreso, confirmou.
- E quer saber se vai lhe acontecer alguma coisa..
- A mim e a ela.
-Embaralhou as cartas novamente, fez certo suspense e disse-lhe que nada de ruim iria acontecer a eles, porém precisavam ter muita cautela. O amor deles valia a pena e lhe assegurou que Roberto não sabia de nada.
- Marcelo ficou tão aliviado que pagou o equivalente a cinco consultas.
- Vejo que você gosta muito dela. Vá tranquilo.
Agora sim, tudo ficou melhor! Chegou a rir de todas as cenas que imaginou. O bilhete não tinha nada de mais, apenas pedia que fosse logo. Pisou um pouco mais no acelerador, pois demorara. Mas agora estava tudo bem. Afinal, se a cartomante acertou sobre eles, porque não acertaria o restante? Estava tranquilo. Ia feliz, pensando nos próximos encontros com Camila.
Chegando à casa de Roberto, ele próprio abriu a porta.
- Desculpe-me pela demora.
- Roberto não respondeu: tinha as feições transtornadas. Indicou uma sala mais adiante.
- Assim que Marcelo adentrou na peça não consegui reprimir um grito de horror!
- No chão estava Camila, numa possa de sangue... Morta!
- Roberto segurou Marcelo pelo colarinho e lhe deu dois tiros, deixando cair o corpo ao lado do de Camila.

FIM


Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. V. II.

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